domingo, 28 de agosto de 2011

ÉRICO NOGUEIRA, MARCO CATALÃO E XOXÓ DIALOGAM SEM RESERVAS

Paris, Saint German dês Près, Rue de l’ancienne comédie, Restaurant Le Procope. O fato? Minha cabeça pendia ao embalo do pastis. A viagem? Achar o lugar do Livro de Scardanelli no Cânone Ocidental. O idílio? Dois raibãs dissecavam-me corpo e alma. A coincidência? Salut, Érico Nogueira; moi, Marco Catalão; Je suis Caribó Xoxó. Conclusão? Arrastei-os para um papo, precisava decidir, pela primeira vez a vida obrigava-me a uma decisão.        
(Marco Catalão é autor de O cânone acidental e Érico Nogueira é autor de O livro de Scardanelli, ambos publicados pela editora É Realizações)


XOXÓ Sabe, senhores, estive pensando, nos últimos dias, numa frase lida em The Dying Animal (Philip Roth) que diz assim: The great biological joke on people is that you are intimate before you know anything about the other person. Isto tem a ver com poesia, com essa coisa de significação profunda, de apreciação lenta... não tem? Então, é daí que me pergunto até que ponto esta não é uma situação exclusiva de um determinado período histórico, ou seja, não houve um tempo em que os poemas eram mais ‘fáceis’ aos seus leitores, ou um tempo em que as pessoas eram mais parecidas com o que de imediato demonstravam? Não terá a complexidade se transformado num elemento constitutivo da poesia canônica ou das personalidades ‘interessantes’? Um poema de Catulo, ou mesmo um soneto de Shakespeare, não eram mais facilmente assimilados por seus leitores do que são os de Geoffrey Hill ou Bonnefoy?

E.N. Essa frase do Roth é bonita mesmo, e bem verdadeira, ao que me parece, no que toca às relações interpessoais. Já a sua relação com a poesia -- depende de quem lê a frase, de quem faz essa relação. Se entendi bem, Roth parece distinguir dois níveis de intimidade entre as pessoas: somos 'íntimos' delas -- isto é, humanos como elas -- antes de sermos realmente íntimos, escrito agora sem aspas. A primeira intimidade nos é congênita, nascemos com ela; mas pra conseguir a segunda precisamos de algum esforço, de tempo, e por isso quebramos a cara e nos decepcionamos -- ou rimos -- a vida toda... Bem, acho que a intimidade que no passado havia, e hoje não há mais, entre poesia e leitores de poesia era a primeira, a culturalmente 'congênita', digamos, não a segunda, a que depende do esforço individual. Isso facilitava as coisas, sem dúvida, e Catulo só podia chamar César de viado sem precisar se preocupar com processo, prisão ou perseguição porque ambos partilhavam de valores culturais semelhantes. A apreciação cuidadosa e, digamos, profunda da poesia, porém, sempre exigiu bastante esforço do leitor ou ouvinte. Píndaro é difícil pra caralho -- prum grego do séc. V a.C. também, não só pra nós, hehe. Em suma: cê tá fodido, Xoxó; as pessoas que reclamam dos seus versos parece que não partilham dos seus valores. Daí a gritaria.

M.C. Uma das desgraças da nossa época é o culto à personalidade, e os escritores naturalmente não estão imunes a isso. Mas os melhores escritores que existiram, Shakespeare, Pessoa e Homero, não tinham personalidade nenhuma ― ou pelo menos não deixaram que a sua personalidade os impedisse de serem sempre outros. Você mesmo, Xoxó, não existe, não é ninguém, e os seus textos são muito mais interessantes do que sua suposta personalidade... Ou melhor: seus textos são sua personalidade.
        Quanto à complexidade, sinceramente, não sei se os textos de Hill ou Bonnefoy são mais complexos que os de Shakespeare e Catulo... Talvez sejam só mais complicados. Por outro lado, quem é mais complexo, Gôngora ou cummings? Hölderlin ou João Cabral?

XOXÓ É mesmo, bonito, meus textos são a minha personalidade xoxística, acho até que por isso compreendo melhor Gôngora do que cummings, João Cabral do que Hölderlin, e os que reclamam das xoxotagens não partilham mesmo dos meus valores, Ericozinho, mas querem me fuder, você foi em cima, é sempre assim? (...) amar primeiro e conhecer em seguida, mas e quem não ama primeiro, e quem não exercita este amar congênito, vai ler prosa? Seria então a poesia a apreciação de uma mulher bem vestida, bem maquiada, bem tratada, convidando-nos a amá-la à primeira vista (arre!)? E a prosa, uma conversa inicial por telefone, um bilhete sugestivo ao fim de um dia árduo de trabalho, a ponderação das características do outro explicitadas por um amigo em comum? Há propriamente algo que diferencie a prosa da poesia? A mim, parece que a questão fundamental do fosso que se abriu entre o leitor e o autor de poesia guarda relação com a problemática verso – prosa, cês não acham?

M.C. Enquanto o nosso mundo for o que é, o fosso só vai se alargar cada vez mais. Não há lugar pra poesia na nossa sociedade (e não falo só do Brasil), mas isso não deveria espantar ninguém. O que você queria, Xoxó? Que lessem seus poemas no caminho entre a academia e o show da Ivete Sangalo? Que a Globo fizesse adaptações das suas pendengas literárias? Que o seu site tivesse mais acessos que o da Bruna Surfistinha? Vai esperando...

E.N. É sempre assim, Xoxó: a inveja mata... Enfim, a prosa simplesmente narrativa -- isto é, aquela que quer sobretudo 'contar uma história', e se concentra no 'quê', não (ou não principalmente) no 'como' -- não me interessa nadinha, e perde de lavada, hoje, pro cinema. Quanto ao fosso -- acho que se relaciona, na verdade, com o lance da forma, quer se trate de uma prosa como a de Hermann Broch, ou da poesia de um Ezra Pound. E a forma, como cê disse, Xoxó, tem que ver com amor à primeira vista.
   
XOXÓ O que diz, como diz e quem diz é a poesia (Horácio). O que diz não é cada vez mais insistentemente ‘inspirado’ no saldo literário da tradição? Não tem poema por aí que obriga o leitor a dar uma revisada na História da Literatura para iniciar o diálogo? Os temas se esgotaram ou os professores todos se danaram a escrever?

E.N. Tá aí um ponto interessante. A poesia sempre foi emulação, cópia, roubo, apropriação do legado -- e isso desde o papai Homero, que deve ter se apropriado de gente que nos escapa... O ponto é: você pode ser um pedante frustrado e achar que erudição ritmada é sinônimo de poesia. O problema é que outros pedantes frustrados que eventualmente tenham lugar de destaque na academia também podem achar que é -- e aí o circo tá armado, e os poetas de verdade, fodidos. A verdadeira erudição, porém -- a erudição de Horácio, por exemplo, que cê bem lembrou --, nunca é veneno, mas um fortificante pra poesia. Ora: mas qual a diferença entre verdadeira e falsa erudição, -- entre o verdadeiro e o falso poeta, em suma? Além do talento, que é um troço inexplicável, o que os diferencia é muito simples: amor sapientiae, o amor da verdade. O verdadeiro poeta é o que é veraz consigo mesmo, e que, à maneira de Sócrates, só diz o que lhe parece verdadeiro.  

M.C. A partir do momento em que você escreve um verso, você está dialogando com toda a tradição literária. Não tem como fugir disso. Se você escreve um poema de três versos e dezessete sílabas, está dialogando com Bashō, ainda que nunca tenha ouvido falar dele. O caso de Antonio Porchia é exemplar: um escritor sem qualquer erudição (que, ao que consta, tinha dois livros em casa), em que os leitores encontram ecos de Heráclito, Lao Tsé, Lichtenberg...
O que me parece inegável é que hoje temos acesso muito mais fácil e imediato a uma quantidade imensa de textos, de diversas épocas e lugares, e muitas pessoas acabam confundindo a citação fácil e rasteira com a cultura, que é algo muito mais complexo e lento, que demanda tempo ― tempo que pouquíssimos estão dispostos a gastar...

XOXÓ Por falar em Bashô, tem um haikai pra você, meu lindo:

TATEANDO

Marco Catalão
tão intrépido no nome
tão frouxo na mão

M.C. A mão pode até ser frouxa;
a verga tem que ser dura.
Pois se o pau (ou o verso) é chocho,
Xoxó, nem tua mãe te atura.

E.N. Isso é briga de cachorro grande. Eu é que não vou me meter...
 
XOXÓ Vocês também são católicos, ex-alunos de Simão Bacamarte (Olavo de Carvalho) e integrantes da direita rançosa do Brasil? As credenciais, por favor.

E.N. Eu odeio gente, manada, matilha -- os coletivos, em suma. Afora o Santos Futebol Clube -- ave, Santos! --, não suporto nenhum tipo de agremiação. Também odeio burrice, ainda que seja burro (ou por causa disso mesmo) em muitas situações. Dito isso, é claro que de esquerda eu não sou, pois a esquerda é sempre, de certo modo, coletivista -- e eu, eu quero é que, excetuadas minha mulher, minha mãe e minha irmã, todo o mundo vá tomar no cu. Isso deve me fazer de direita, aos olhos de muitos. 
Não fui aluno do Olavo, a quem vi no máximo duas ou três vezes na vida, sempre em companhia do Bruno Tolentino, meu amigo, que Deus o tenha. E por falar em Deus -- sou católico, sim, mas tenho uma queda pelo Dr. Lutero, e acho que vou me salvar ou me danar única e exclusivamente por culpa minha: um católico solitário e esquisito, portanto, que do próximo não aguenta nem a sombra nem muito menos o cheiro.  

M.C. Não sei do que você está falando, Xoxó. Politicamente, estou à esquerda da esquerda. Não gosto de fanatismos de qualquer tipo ― político, religioso ou esportivo ― mas naturalmente tenho minhas crenças, meus posicionamentos irredutíveis e meu time. Só não acho que eles sejam relevantes para a compreensão do que eu escrevo.

XOXÓ ...aposto com qualquer um que Marcuzão (aglutinação de mar-co-ca-ta-lão) é são paulino, ele é todo chique e todo ponderado. Já o Santos me faz lembrar uma goleada de 6 x 2 que o meu Vitória lhe aplicou aqui no Barradão em 2009 pelo campeonato brasileiro. Menino, essa coisa de excetuadas sua mulher, sua mãe e suas irmãs, todo o mundo ir tomar... olha, vou te dizer, jamais vi maior declaração de amor à humanidade – acabar diz que não gosta do próximo, prefere o anterior, hein gostosinho?     
  
M.C. Haicai não é epigrama;
trocadilho não é poesia.
Xoxó, ou você se afia
ou acaba comendo grama.

E.N. O Santos, como time cristão, vive fazendo caridade. Olha, minha mãe sempre falou que eu era a coisa mais linda do muito -- e eu desde criança acreditei. Não é à-toa que Érico lembra Édipo.  

XOXÓ E a crítica, tá muito crítica? Aonde? Quem?

E.N. Crítica? Xoxó, cê tá de brincadeira, né? Como se diz por aí: crítica de cu é rola.

M.C.  A crítica que se faz por mera profissão, pra ganhar o salário no fim do mês, sem qualquer envolvimento com o texto que se critica, não merece ser levada em conta. A crítica que é compadrio, conchavo, troca de favores entre poetastros que se citam e recitam mutuamente, sequer merece o nome de crítica. A crítica que se finge raivosa e implacável, mas que não tem autocrítica, só engana quem quer ser enganado. A crítica feita pelos próprios poetas, às vezes até muito inventiva e instigante, pode ter muito valor ― mas não como crítica.
          A crítica que não é nenhuma das anteriores, a crítica lúcida e candente, rigorosa e generosa, equânime e aberta, é a única que me interessa. Mas onde a encontrar?

XOXÓ Humm, você também tá querendo a crítica que o Érico falou, hein esperto? Seu Nogueira, de uma vez por todas, deixe de ser egoísta e nos diga logo onde está esta crítica de cu.

E.N. Não perco o meu tempo lendo crítica de crítico -- só me interessa o que o poeta diz ou deixa de dizer. E o que há de melhor, em crítica e em poesia, hoje, me parece ser o já citado Geoffrey Hill. Seus Collected critical writings são a bíblia do gênero, e um pau no cu dos academicuzinhos de plantão. Gosto também do Durs Grünbein, um grande poeta, e um pensador muito consistente. Na Banânia? Acho que o velho Horoldão ainda é a pica mais grossa do pedaço. Mas por pouco tempo, hehe.  

XOXÓ E por falar em influências...

E.N. Meu barato é poesia latina do período de Augusto -- Virgílio, Horácio e Propércio --, e poesia grega do período helenístico: Calímaco e Teócrito. Junte-se Homero a tudo isso, e aí estou eu. Poesia moderna que me tenha influenciado? Petrarca, Camões e Góngora, com certeza. Depois disso? Goethe, Leopardi, Mallarmé, Rilke, Pound -- e acabou. 

M.C. Você poder ver pelos meus livros que eu sou muito influenciável. Lendo o seu blog, já fico com vontade de escrever epigramas; às vezes escrevo em determinado ritmo porque estou com uma música na cabeça... Já falei em outra ocasião sobre minha família abstrata e impossível: Fernando Pessoa, Montaigne, Tchekhov, Tanizaki, Guimarães Rosa, Porchia, Rabelais, Shiki, Machado, Shakespeare, Kafka, Rilke, Kavafis, Proust, Dostoievski... Estes são os autores a quem eu sempre volto, mas há outros, muitos outros...

Epílogo? Ai Deus, esses meninos são demais... não tenho como escolher, quero os dois.

7 comentários:

  1. xoxó, tô achando que cê tava com medo dos moços. eles não mordem, meu querido! já leu shiki ou bashô, meu nego? faltou feijão! haroldão rima com cuzão...

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  2. Xoxó agradece sua atenção e aproveita para informar que não era medo, era receio, Gutinho. Ainda não li nem Bashô nem Shiki, mas haroldão é no cuzão mesmo!

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  3. Puta Xoxó...
    O Catalão te enrabou mesmo!
    Isso é que dá mexer com cachorro grande.

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  4. Acompanho os trabalhos do Xoxó: é o que de melhor na literatura brasileira nos últimos anos. Cultura com diversão, sem frescura - apenas a viadagem de Xoxó, mas uma viadagem honesta, franca, de quem é assumido - e com uma linguagem de poeta vivo, não de poeta morto empoeirado, com empostação de quem está sempre com uma frase de feito no gatilho, numa tribuna. Pensamento, literatura, poesia de qualidade e humor, muito humor. Invejo a tertúlia... abç a todos!

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  5. O artifício do anonimato é brilhante. Você pode criticar ou elogiar à vontade, sem pensar no amanhã, ao contrário dos críticos de costume, sempre de rabo preso. Os de jornal, com os donos da mídia. Os da universidade, com o jogo de comadres do toma-lá-dá-cá. Por isso CaribóXX é necessário.
    Leyla

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